24 de dez. de 2012

O dito pelo não dito


A essa altura da vida tudo o que queria era aproveitar o que já conquistara até ali. Não imaginava que, justamente agora, as reviravoltas começariam a assombrá-lo. No fundo sempre soube que viriam. Mas se não antes, por que agora?
Não consegue lembrar com exatidão o momento do primeiro encontro, mas lembra dos primeiros dias, da primeira sensação. Lembra que ela era a mais interessada. Sempre tinha alguma pergunta na ponta da língua. Lembra-se também de, por diversas vezes, ter imaginado estar se apresentando somente pra ela. “Não entendo essa tua mania de encarar tuas aulas como apresentações de espetáculos” ela dizia. Mas, ora, o que seria se não uma forma de se apresentar à pequena plateia sedenta de seu conhecimento. Lembra que no início ela pensava assim.
Enquanto desfaz a primeira gaveta se recorda da advertência feita pela mãe. Não acho que seja uma boa ideia. Ela não me parece pronta para ser uma dona de casa. Você é jovem e ela mais ainda. Optou por ignorar a todas. Sim, ele era jovem e ela alguns anos mais jovem do que ele. Mas de que isso importava afinal? Estavam apaixonados, era o que bastava. Ele ainda se lembra daquela madrugada quente em janeiro, ambos estavam sem sono (ou seria um artifício de seus próprios corpos para aproveitarem cada minuto com o outro?) e ele terminava o primeiro capítulo de seu mais recente romance. Pediu a ela que deixasse a televisão de lado por alguns minutos e contribuísse com a sua sincera opinião. Ele nunca fazia isso. Nunca deixava ninguém ler seus livros pedaço por pedaço. Eles eram obras de arte por completo. Separados não faziam sentido pra ninguém, a não ser pra ele. Com certo entusiasmo ela percorreu os olhos pelas palavras. Uma, duas, três vezes.  Ele se perguntava o que ela estaria pensando. Parecia complicado demais? A bagunça de sua cabeça tornava impossível a compreensão para quem viesse de fora? Ao fim da leitura ela tinha os olhos marejados e o papel apertado nas mãos. É tão lindo e tão poético, mas me deixou extremamente angustiada. Era ela, só podia ser. Ele soube ali, no minuto em que ela enxergou o que ninguém mais enxergava em seus livros. Nele.
Uma mala pronta e ainda restam 2/3 do guarda-roupa. Seria o suficiente para algumas semanas, mas a necessidade de sair dali o mais rápido possível, de nunca mais voltar a pisar naquele lugar fez com que ele esvaziasse tudo por completo e levasse até o último pente de cabelo. Hora da divisão. Antes de prosseguir desamarra do pulso as fitas que ela lhe dera nas últimas férias com a promessa de lhe trazer sorte. A ele não valeram de nada. Era melhor deixa-las por ali. Recolhe todos os seus discos sabendo que ela entrará em desespero quando procurar aquele LP raríssimo do Pixinguinha e não encontrar. Ele lhe pertence, nada mais justo do que voltar em sua bolsa. Deixa com ela todos os cds, esses não valem tanto assim. Ele gosta das coisas à moda antiga, já ela é moderna em excesso.
Uma última conferida no quarto. Uma olhada furtiva à cama. A cama de casal, a cama deles que guarda segredos que só os dois compartilhavam. Talvez agora ela já os tenha compartilhado com a terceira pessoa. Ele notara a diferença. Ela, que sempre fora o Sol, estava cada vez mais fria e distante. Ele preferiu não dizer nada. Esperar pela notícia como quem sabe o que está por vir. Encontrei outra pessoa. Você sabe que o problema não é você. Nós fomos precipitados, deveríamos ter escutado os outros. Eu ainda te admiro muito. É melhor acabar com isso antes que algum dos dois saia machucado.
Aproveitou o momento em que sabia que ela não estava para pegar suas coisas. Qualquer contato agora seria extremamente delicado, e ele estava ocupado demais (demonstrando a todos que concordava com o fato de que o término era a melhor opção) para andar em seus campos minados. Sem esperanças de volta, sem lágrimas, sem ressentimentos. Simples assim. Outro dia um amigo o parou na rua e quis saber sobre o ocorrido. Sabe como é, é o mau de nossa geração, incompatibilidade de genes. Mas estamos bem. Somos amigos ainda.  A velha história da mentira contada diversas vezes, até virar uma verdade.
Antes de partir decide deixar um bilhete para não parecer muito grosseiro.
Estive por aqui para pegar minhas coisas. Não encontrei o meu Neruda mais novo que você tomou emprestado e, até onde eu lembro, não chegou a ler. Será que poderia mandar pelo vizinho? Precisarei dele para a próxima aula. O senhorio trouxe a papelada. O aluguel está confirmado no seu nome. Sugiro que aceite uma ajuda de seu futuro companheiro, o reajuste esse ano foi salgado.
Pra quê despedir-se com beijos? Para quê desejar coisas boas e que ela se cuidasse? Ele sabia que a partir dali ela seguiria melhor do que ele.
Um último passo silencioso e sem olhar pra trás. Confere todos os documentos na carteira e sente o peito apertar. É a saideira da vida que ele viveu ali. A saudade é inevitável e já começa a se fazer presente. Junto com ela uma surpresa, alívio. Alívio por se sentir livre, alívio por conseguir, independente das circunstâncias, deixar pra trás uma rotina da qual ele sabia já não ser mais a sua. Aquela leve impressão de que já se vai tarde.

Nenhum comentário: