26 de nov. de 2014

A cartilha do desapego

Eu sei como funciona. O acaso me prega peças. E no meio delas você veio embrulhado pra presente. Eu tropeço em cada oportunidade. Não sei ser pela metade, então acabo sendo por inteiro. E ninguém é ingênuo o suficiente pra cair nessas armadilhas do acaso. Só eu.

Eu vou vivendo por inteiro, sendo por inteiro, sentindo por inteiro e me entregando de bandeja por inteiro. Vou parar e prestar atenção em você, pelo simples fato de que eu adoraria que você fizesse o mesmo por mim. Eu reparo em tudo. Já sei seus horários, já gravei a posição das cinco pintinhas perdidas pelo seu nariz, já sei os dias em que você aparou ou não a barba. Tudo isso porque eu presto atenção. Eu absorvo suas palavras. Escuto, leio, mastigo, engulo. Qualquer coisa que indique um prefácio desse livro novo que é você me apetece de forma incansável.

Então eu lembro que eu também sou um livro. Um livro novo que você nunca leu. Me posiciono estrategicamente aberta entre as páginas 20 e 21 na sua mesa de cabeceira. No primeiro dia você passa direto e eu imagino que tenha perdido a batalha contra o sono. Tudo bem, vamos tentar novamente. Segundo dia e dessa vez a tela do computador parecia mais interessante. Vou ficar por aqui. Daqui a pouco o seu interesse grita aí dentro e você pega o livro, que sou eu, para dar uma folheada. Afinal, eu li seu livro por inteiro. Sei as frases, as citações, as vírgulas de cabo a rabo.
Os dias passam e o livro continua ali, largado e aberto. Você o pegou, leu algumas páginas e voltou a deixá-lo de lado. E nesse tempo eu cansei. Não dá pra ser por inteiro quando você não é nem ¼. Não dá pra fingir que eu não tenho vontades e necessidades pra agir de acordo com as tuas. Eu mesma fecho o livro e o retiro de perto de você. Ele é interessante e eu sei que haverá mais gente disposta a lê-lo.

Começo então a seguir as regras da minha cartilha do desapego. Vai ser fundamental evitar contato daqui em diante. O seu nome vai sendo apagado da minha cabeça, mas vai permanecer intocável no topo da minha lista de contatos do facebook. Cada movimento vai ser calculadamente ignorado. Até que vai deixar de incomodar. Não é doer. Os calos que eu ganhei ao longo do caminho até aqui já me deixaram mais resistente à dor. Mas é um incomodo. Uma pequena ardência na boca do estômago e um pequeno nó na garganta. A sensação de saudade de tudo aquilo que não foi, não é e nunca vai ser. “Minha filha, isso é apeguite moderada. Vou te prescrever uns remédios e em alguns dias estará tudo de volta ao normal”.

E assim foi. Ou será. Ou eu espero que seja.

10 de nov. de 2014

Medos dentro de caixas

Ele teve tudo em mãos, mas não soube aproveitar.
No meio das minhas catástrofes e catarses eu só queria alguém que enxergasse além das minhas retinas.
Eu estava exposta e entregue nas minhas palavras, mas ele preferiu tremer de medo ao invés de devorar cada uma delas.
Eu me mostrei e me abri como um origami desfeito para que ele notasse as linhas e acertasse o desenho. Mas dobrar de volta era trabalhoso e ele não se sentia capaz.
Eu estiquei tapetes e ele construiu muros de silêncio e insegurança.
Assim eu não pude. Assim eu não quis.
Minha paixão por detalhes fez com que eu enxergasse o pedido de socorro em cada suspiro desse homem. Eu atendi. Estou aqui, pode descansar. Mas ele tinha medo de ser feliz.
Essa criatura que procurava demônios para chamar de seus me deixava intrigada, mas eu já cansei de me sentir assim.
Ainda que ele justificasse tudo me soava falso. Não era culpa minha. Meus ouvidos haviam sido programados pra escutar desse jeito.
Logo agora que eu já havia me acostumado ao marasmo e calmaria ele tentava agitar minhas águas.
Logo agora que a poesia dentro de mim estava calada e adormecida ele havia encontrado um jeito de fazê-la gritar.
Agora eu esqueci como se tranca a caixa. Se tiver sorte acho as chaves antes que seja feito o estrago.